Imagino se me fosse possível esquecer coisas ruins. Imagino se pudesse apagar da memória momentos desagradáveis. Coisas ruins e momentos desagradáveis. São como fantasmas. Uma mente livre de culpas. Uma mente sem lembranças. Faria uma lista das coisas a serem esquecidas :
A última briga com minha mãe, As noites-quase-madrugadas em que não queria ir pra casa e sabia, aliás, que não queria um a lugar algum, A foto da menina com choro feio e triste correndo de uma bomba, A penúltima briga com minha mãe, Os urubus apressados da África, A discussão que tive com um amigo de infância por causa de um desfiado em minha camiseta, Todas as brigas com minha mãe, Fogueiras que acendi, gentes que coloquei nas fogueiras e a sensação de realização decorrente disso tudo, Os uniforme listrados que comprei pros não-puros, Papo triste do veado da esquina, O kilo de alimento que não dei, As togas e capuzes brancos que usei pra manter a ordem,
As cruzes cruzadas com espadas que meus ideais santos me batalharam, A abstinência viciada que me dopa, Ópio do povo, sejam eles o que forem, se ópio mesmo ou não, A minha ansiedade, fuga, As noites de dormir cedo, fuga, As carreirinhas, fuga, Aos terços e auto-batismos, fuga, A fuga e toda ela,
Toda noite mal dormida, Todo pau-oco de santo, Todas as meias verdades, e as mentiras verdadeiras de um domingo,
Os Reichs de cem anos, A rosas cancerígenas, O petróleo que achei no quintal do vizinho, O verde de tuas janelas, e o céu cinza, O quarto poder e todo romantismo burguês, O golpe a que dei o nome de revolução, O paraíso que comprei com o paraíso que vendi, As mães das praças de maio, junho, julho, Você,
[Esqueceria ainda] o se e o então, Causa e efeito, A objetividade e seu prefixo pseudo, O meu jaleco branco, Toda a relatividade e a necessidade dialética, O além-físico.
Esqueceria, abandonaria tudo, sim. E, ao fim, sem esquecimentos, não seria mais eu.
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